Kerem Avraham é um dos bairros tradicionais de Jerusalém
ReutersAlgumas construções de pedra bege, de três andares em média, marcam a paisagem de Kerem Avraham. O tradicional bairro judaico de Jerusalém, de cunho popular, continua quase o mesmo do tempo em que sua população sofreu na Guerra de Independência (1948-1949). Apenas alguns parquinhos, com escorregadores de plástico, tomaram o lugar de alguns quintais de onde floresciam figueiras e oliveiras.
A declaração de Donald Trump, reconhecendo a cidade como capital do Estado de Israel, remete à 1947, quando, após a partilha da Palestina definida pela Organização das Nações Unidas, rebeliões árabes contra a decisão, infestaram Jerusalém. Tiros vindos das colinas, dos lados de Alsawana e Silwan, arranharam o silêncio noturno do pacato bairro. Deram início à tal guerra e minaram o relativo clima de tolerância que ainda existia.
O risco de uma rebelião desta magnitude, hoje, é bem menor. Os árabes não mais mantêm exércitos semi-regulares, apoiados por forças britânicas, na cidade. Locais como o hospital Hadassah, para onde ia uma comitiva atacada violentamente naqueles tempos, com 77 judeus sendo mortos, estão mais protegidos.
Entre as vítimas estavam intelectuais da Universidade Hebraica de Jerusalém. Da mesma maneira, a ânsia desenfreada de milícias israelenses, que também causaram a morte de árabes, em bairros como Talbye e Katamon, está mais contida.
Acontece que uma atmosfera de estranheza, em função da discórdia, ainda permanece sobre a cidade, várias vezes reerguida após batalhas. Como Berlim da Guerra Fria, um muro ainda incide sobre Jerusalém. A decisão de Trump, portanto, pode ter sido unilateral, mas pelo menos busca eliminar essa névoa em direção às negociações.
Negociações que não existiram a partir da definição da partilha. O próprio Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Nacional Palestina, em 2011, reconheceu o erro dos líderes árabes de não terem aceitado a decisão da ONU naquela ocasião. Poderiam hoje ter muito mais daquilo que agora reivindicam. Ao lado de um Estado judeu, da mesma maneira, pleno e soberano.
Kerem Avraham espera por essa negociação, em nome de sua própria história de sofrimento, depois do retorno de muitos judeus oprimidos na Europa. No bairro, nesta época, famílias se amontoavam em quartinhos de prédios afundados sob a calçada, em construções que permitiam blindá-los contra ataques.
Quando foi cortada a água, a luz, a comida foi racionada e a cidade vivia sob os contornos das luzes de lampião. Muitos morreram naqueles tempos, quando Israel sonhava em existir para espantar o fantasma das perseguições aos judeus, inclusive do então recente Holocausto.
Kerem Avraham espera por essa negociação. Pelo bem do bairro e de suas extensões, nos quarteirões que integram, e ao mesmo tempo dividem, a Cidade Velha e suas três religiões: judaísmo, cristianismo e islamismo. E, quem sabe, pelo bem da humanidade.
Trump reconhece Jerusalém como capital de Israel
Kerem Avraham continua quase o mesmo. Casinhas simples com varandas, estreitas ruas com comércio (como a Geúla), atmosfera de passado e futuro que se mesclam, movimentos intensos, mas ao mesmo tempo tranquilos. Pequenos prédios com paredes de pedra. E os novos parquinhos, que substituem figueiras e oliveiras.
Os habitantes de Kerem Avraham só querem agora confiar que novamente foi aberto um caminho. E, sob a claridade especial das estrelas de Jerusalém, só querem urrar em nome de algo maior, de uma alegria. Não mais da dor. Um urro tão grande que, como disse Amós Oz, una os mortos e os vivos. E, que seja tão alto e imponente, que faça as rajadas de metralhadoras e as explosões ficarem tão tímidas, que só possam se calar.
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